Blog di FORMAZIONE PERMANENTE MISSIONARIA – Uno sguardo missionario sulla Vita, il Mondo e la Chiesa MISSIONARY ONGOING FORMATION – A missionary look on the life of the world and the church
No dia 5 de Outubro ocorreu o décimo aniversário do “martírio” de Annalena Tonelli, uma leiga voluntária, missionária católica italiana, a “Madre Teresa” do povo somali. Era uma mulher extraordinária, que viveu em silêncio, durante 35 anos, uma vida de radicalismo evangélico num ambiente completamente muçulmano, totalmente dedicada aos pobres. Ela foi assassinada a 5/10/2003. Annalena nunca gostou de falar de si mesma. Mas uma vez ao ver-se confrontada com o convite insistente do Vaticano num Encontro sobre o Voluntariado, que ocorreu a 30 de Novembro de 2001 em Roma, Annalena acedeu a falar do seu serviço e deu este extraordinário e comovente testemunho. Para facilitar a leitura, dividimos o texto em capítulos.
Sou Annalena Tonelli. Nasci na Itália, em Forlì, a 2 de Abril de 1943. Há trinta anos que trabalho na área da saúde, embora não seja médica. Doutorei-me em Direito na Itália. Tenho habilitação para a docência da Língua Inglesa nas escolas superiores do Quénia.
Possuo certificados e diplomas na área do controle da tuberculose obtidos no Quénia, da medicina tropical e Comunitária, na Inglaterra, e de Leprologia, na Espanha.
Saí da Itália em Janeiro de 1969. Desde então, tenho vivido ao serviço do povo da Somália. Foram trinta anos de partilha. De facto, sempre vivi com eles, excepto durante curtas interrupções que passei noutros países por razões de força maior. Optei por viver para os outros: os pobres, os que sofrem, os abandonados, os não-amados… logo desde criança. Assim tenho vivido e assim espero continuar a viver até ao fim da minha vida.
Só queria seguir Jesus Cristo. Nada mais me interessava com tanta força: ELE e os pobres n’ELE. Foi por ELE que escolhi a pobreza radical… embora jamais possa ser tão pobre como um verdadeiro pobre… como os pobres de que está cheio cada dia da minha vida.
Eu vivo servindo, sem nome, sem a segurança duma ordem religiosa, sem pertencer a nenhuma organização, sem salário, sem contribuições voluntárias para a minha velhice. Não sou casada porque assim o escolhi com alegria, desde a juventude. Queria ser toda para DEUS. Era uma exigência da minha maneira de ser, a de não ter família própria. E foi o que aconteceu, por graça de DEUS.
Tenho amigos que me ajudam, e o meu povo, há já mais de trinta anos. Tudo tenho podido fazer graças a eles, sobretudo os meus amigos do “Comité para a luta contra a fome no mundo” de Forlì. Naturalmente, também tenho outros amigos em várias partes do mundo. Nem poderia ser de outro modo.
As carências são muitas. Dou graças a Deus por mos ter dado e por ter continuado a dar-mos. Nós somos um só ser em duas frentes aparentemente diferentes mas realmente iguais em substância: lutamos para que os pobres possam ser levantados do pó e libertados; lutamos para que TODOS os homens possam ser uma só realidade.
Parti da Itália após seis anos de serviço aos pobres numa favela da minha própria cidade, aos meninos do orfanato local, às meninas com deficiência mental e às vítimas de traumas sofridos na violência doméstica, aos pobres do terceiro mundo, graças às actividades do Comité para a luta contra a fome no mundo que eu tinha ajudado a fazer nascer.
Convenci-me de que não poderia entregar-me por completo se ficasse na minha terra… as fronteiras da minha actividade pareciam-me demasiado apertadas, asfixiantes… Compreendi bem depressa que se pode servir e amar em qualquer lugar, mas, entretanto, já me encontrava na África e sentia que fora DEUS a levar-me para lá – e foi lá que fiquei, com alegria e com gratidão.
Partira na decisão de ‘proclamar o Evangelho com a vida’, a exemplo de Charles de Foucauld, Charles de Foucauld, que tinha incendiado a minha vida.
Passados trinta e três anos, continuo a proclamar o Evangelho apenas com a minha forma de vida e anseio por continuar a proclamá-lo assim até ao fim. É esta a minha motivação de base, juntamente com a paixão invencível pela pessoa ferida e menosprezada inocentemente, para além da sua raça, da sua cultura e da sua fé. Procuro viver com respeito extremo por “aqueles” que Deus me deu. Até onde foi possível, assumi o seu estilo de vida. Vivo muito sobriamente em termos de habitação, alimentação, meios de transporte e vestuário. Renunciei espontaneamente aos costumes ocidentais. Tenho procurado dialogar com todos. Tenho dado “CARE” (=atenção): amor, fidelidade e paixão. Que o Senhor me perdoe se estou a usar palavras demasiado grandes.
Praticamente, vivi sempre entre o povo da Somália; a princípio com os do nordeste do Quénia; depois com os da Somália propriamente dita. Vivo num mundo que é rigorosamente muçulmano. Os únicos frades e freiras que estiveram na Somália desde os tempos de Mussolini até à guerra civil que rebentou há onze anos, só foram aceites lá para prestar serviço religioso aos Italianos, exclusivamente.
Tenho vivido estes últimos cinco anos em Borama, no extremo Nordeste do país, mesmo na fronteira com a Etiópia e Djibuti. Não há lá cristão algum com quem eu possa conviver. Duas vezes por ano, pelo Natal e pela Páscoa, o bispo de Djibuti vem celebrar a Eucaristia para mim e comigo.
Vivo sozinha porque as minhas colegas desta caminhada, que tal como os pobres fizeram da minha vida um paraíso na terra durante os meus dezassete anos de deserto, se dispersaram na altura em que fui obrigada a sair do Quénia. Aconteceu em 1984. O governo do Quénia tentou perpetrar genocídio contra uma tribo de nómadas do deserto.
Era para eliminar cinquenta mil pessoas. Conseguiram matar mil. Mas eu consegui impedir que o massacre avançasse e se concretizasse. Por esta razão, fui deportada um ano mais tarde. Decidi ficar calada em nome dos pequenitos que eu tinha deixado em casa e que teriam sido castigados se eu tivesse aberto a boca.
Mas, em minha vez, os Somalis falaram a uma só voz e lutaram para que a questão do genocídio fosse esclarecida e a verdade viesse ao de cima. Passados dezasseis anos, o governo do Quénia admitiu publicamente a sua culpa, pediu-lhes perdão e prometeu compensar as famílias das vítimas.
Os jornais e a BBC falaram muito da minha intervenção. E hoje, muitos dos Somalis que desconfiavam de mim, aceitaram-me e tornaram-se meus amigos. Sabem agora que eu estava pronta a dar a vida por eles, que arriscara a minha vida por eles.
Na altura daquele massacre, fui presa e apresentada a tribunal marcial…As autoridades, todas elas não Somalis mas cristãs, disseram-me que me tinham feito duas emboscadas a que miraculosamente escapara, mas que não teria essa sorte à terceira vez… A seguir, um deles, que era cristão praticante, perguntou-me que era o que me levava a agir desta forma. Respondi-lhe que o fazia por Jesus Cristo, que pediu para darmos a vida pelos nossos amigos.
Posso afirmar que, durante a minha já longa existência, eu verifiquei várias vezes que não há mal que não venha ao de cima nem há verdade que não venha a ser descoberta. O que importa é continuar a lutar como se a verdade já tenha vencido, os abusos nos não tenham tocado, e o mal não tenha triunfado. Um belo dia, o bem haverá de brilhar. Peçamos a DEUS a força de saber esperar, porque poderá tratar-se duma longa espera… que poderá durar até depois da nossa morte. Eu vivo à espera de DEUS e compreendo que me pesa menos que a outros à espera pelas coisas humanas. Vivo intimamente integrada no seio dos pobres, dos doentes, daqueles que ninguém ama. Ocupo-me principalmente com o controle e a cura da tuberculose.
Fui para o Quénia como professora porque era o único trabalho que, no início duma experiência tão nova e tão forte, podia exercer decentemente sem dar prejuízo a ninguém. Aqueles foram tempos de intensa preparação das aulas de quase todas as matérias, devido à falta de professores, de estudo da língua local, da cultura e das tradições, de envolvimento intenso no ensino sob a convicção profunda de que a cultura é uma força de libertação e de crescimento.
Os alunos, muitos dos quais tinham a mesma idade que eu, ou eram pouco mais jovens que eu, eles que tinham confrontado o Director ao saber-se que uma professora estava para chegar e lhe garantiram que me teriam impedido de entrar na sala, acabaram por se envolver e motivar profundamente. Os resultados foram tão bons que vários alunos daqueles tempos ocupam hoje posições invejáveis nos vários Ministérios, no Governo, nas actividades privadas do país, chegando-me por vezes ecos todos os alunos do Nordeste de então contam que foram meus alunos e eu a sua professora… coisa que, naturalmente, nem sempre corresponde à verdade.
Recordo que quase a seguir à minha chegada, me enamorei de um pequerrucho que sofria de “sickle cell” e de fome… era a altura duma horrível carestia…vi muita gente morrer de fome…
No decurso da minha existência, tenho sido testemunha de outra carestia, de dez meses de fome, em Merca, no Sul da Somália,… e posso dizer que se trata de vivências tão traumatizantes de sacudir até a fé duma pessoa. Eu tinha reunido à minha volta, a viver comigo, catorze crianças com as habituais doenças da fome.
Dei imediatamente do meu sangue àquele menino e implorei aos meus alunos que fizessem o mesmo. Um deles fê-lo e, a seguir a ele, muitos outros, superando assim a resistência dos preconceitos e dos fechamentos de um mundo que, aos meus olhos de então, parecia desconhecer toda a forma de solidariedade e de piedade. E esta acabou também por ser talvez a minha primeira experiência de que, também no contexto islâmico, “o amor gera amor”.
Mas o meu primeiro amor foram os tuberculosos, as pessoas mais abandonadas, mais rejeitadas, mais recusadas naquele canto do mundo. A tuberculose há séculos que faz razia entre os Somalis. Calcula-se que praticamente toda a população anda infectada. Mas, providencialmente, apenas uma certa percentagem das pessoas infectadas acaba por ser atacada pela doença ao longo da vida.
Vivia eu em Wajir, uma aldeia desolada, no coração do deserto do Nordeste do Quénia, quando entrei em contacto com os primeiros tuberculosos e enamorei-me deles – com um amor que duraria uma vida. Os doentes de tuberculose viviam na secção dos desesperados. O que mais rasgava o meu coração era o seu abandono, o seu sofrimento, que desconhecia qualquer tipo de conforto. Eu nada sabia de medicina. Comecei a levar-lhes a água das chuvas que ia recolhendo do telhado da bela casinha que o governo me atribuíra na qualidade de docente da Escola Secundária. Levava os contentores cheios, esvaziava os deles da água salgadíssima dos poços de Wajir, e voltava a enchê-los com água doce. Eles faziam-me sinais de ordens, parecendo perturbados com a falta de jeito daquela jovenzinha branca de cuja presença pareciam querer ver-se livres o mais rapidamente possível.
Tudo me andava ao contrário naquela altura. Eu era jovem e, portanto, não era digna nem de ser ouvida nem de ser respeitada. Era branca e, portanto, desprezada por aquela raça que se considerava superior a todas as outras, fossem elas branca, negra, amarela ou de qualquer nacionalidade excepto a deles. Era cristã e, portanto, desprezada, rejeitada, temida. Todos estavam então convencidos de que eu viera para Wajir fazer proselitismo. E para cúmulo dos meus males, não era casada, coisa absurda naquele mundo em que o celibato não existe e não é um valor para ninguém – e é de facto um anti-valor.
E passados já trinta anos, só pelo facto de não ser casada, ainda sou vista com compaixão e com desprezo em todo o mundo somali que não me conhece bem. Só quem me conhece bem diz e repete sem se cansar que eu sou Somali como eles e sou mãe verdadeira de todos aqueles que salvei, curei, e ajudei, passando em silêncio sobre o facto de que eu não sou nem jamais serei mãe natural de ninguém…
Comecei logo a estudá-los, a observá-los, pois que estava todos os dias com eles, prestava-lhes serviço de joelhos, estava ao lado deles quando pioravam e não havia quem se importasse com eles, os olhasse nos olhos, ou lhes desse coragem…
Passados alguns anos, na Manyatta (ou aldeia) da TB, todo o doente consciente do fim da sua vida só me queria a seu lado para morrer com o sentimento de que era amado.
Comecei depois a supervisionar os tratamentos depois de terem recebido alta do hospital. Mas isso deu que falar. Não havia conhecimento de tratamentos levados a bom termo no deserto. Eram todos ineficazes, a 100%.
Em 1976 foi-me pedido que supervisionasse um projecto da OMS para a cura da tuberculose entre os nómadas, um projecto-piloto deste tipo em toda a África. Pediram-me que inventasse um sistema que garantisse que os doentes fizessem os tratamentos antituberculosos dia a dia por um período de seis meses. De facto, pela primeira vez na África, foram aplicados os tratamentos de curto prazo para um número indefinido de doentes, tratamentos esses que permitem a cura em seis meses, ao passo que até então eram precisos dezoito meses de remédios tomados todos os dias.
Chegou Setembro de 1976. Decidi convidar os nómadas a estacionar numa área do deserto em frente do Centro de Reabilitação para os Incapacitados onde eu trabalhava com colegas que ao longo dos anos se tinham juntado a mim, todas elas voluntárias sem salário, inteiramente para os pobres e para Jesus Cristo. Com elas, fiz nascer um centro onde se reabilitaram todos os poliomielíticos do deserto do Nordeste durante dez anos. Éramos uma família.
Acolhíamos, além dos poliomielíticos, casos especialmente difíceis de curar e reabilitar… criaturas profundamente feridas: cegos, surdos-mudos, deficientes físicos e mentais… os rapazes cresceram connosco, mães a tempo inteiro, e eu sou para eles, ainda hoje, um ponto de referência constante.
Entretanto, os nómadas começaram a chegar com as suas cabanas amarradas às costas dos camelos. Desmontavam as esteiras, as suas varas curvas, as cordas e montavam as suas cabanas. Durante seis meses, a ingestão de remédios era estritamente verificada dia a pós dia. Os diagnósticos só se faziam por análise da saliva ao microscópio. A administração dos remédios era absolutamente regular… uma espécie de milagre na África. No final dos seis meses, chegava o camelo ou mesmo a caravana inteira; e o doente, já curado, voltava para o deserto.
Esta policy (ou prática) que a OMS (Organização Mundial de Saúde) designou de DOTS (directly observed therapy short chemoterapy, quer dizer, terapia directamente observada de curta quimioterapia) tornou-se a prática universal da OMS para o controle da tuberculose no mundo e é aplicada em muitos países da África, da Ásia, da América e até da Europa como um dos melhores meios para garantir a “compliance” (colaboração) do doente, sem a qual não pode ocorrer uma cura autêntica nem a praga da tuberculose deixará de continuar a sua expansão pelo mundo inteiro, cada vez mais na forma mais trágica, que é a da resistência aos remédios anti-tuberculares.
Esta aventura da Manyatta TB foi uma grande aventura de amor, um dom de DEUS. Foi graças à Manyatta TB e só em parte ao Rehabilitation Centre, – porque os deficientes ainda valem menos que os tuberculosos neste meu mundo – que as pessoas começaram a dizer que, se calhar, até nós iríamos para o céu…
Durante cinco anos, eles tinham-nos atirado à cara que jamais iríamos para o céu por não dizermos “Não há DEUS senão DEUS e Maomé é o Seu profeta”.
Mas depois deu-se um episódio grave que colocou em risco a nossa vida e então o povo começou a dizer que certamente também nós entraríamos no paraíso.
E depois começámos a ser apontadas como exemplo a seguir. O primeiro foi um velho chefe que gostava muito de nós…
“Nós, muçulmanos, possuímos a fé, e vós possuís o amor”, disse ele um dia.
E foi como que a altura do grande descongelamento. As pessoas começaram a dizer cada vez mais que deveriam fazer como nós, que deveriam aprender a cuidar dos outros, em especial os mais doentes, os mais abandonados…
Dezassete anos mais tarde, quer dizer, imediatamente a seguir ao massacre de Wagalla, um velho árabe fez-me parar no meio duma das mais frequentadas ruas da pobre aldeia e, com profunda comoção por haver também amigos seus entre os mortos, e porque vira quando me bateram por ter sido apanhada a enterrar os mortos, também porque tivera medo e nada tinha feito para salvar os seus, ao passo que eu tudo ousara e arriscara para salvar a vida dos seus que se tinham tornado meus, gritou para que todos ouvissem: “No nome de Allah eu te digo que, se seguirmos as tuas pegadas, nós iremos para o céu”.
Em Borama onde actualmente resido, as pessoas rezam intensamente para que eu me converta ao islamismo.
E também nos outros lugares por onde passei em serviço, as pessoas, a certo ponto, começavam a rezar pela minha conversão ao islamismo. Falam-me do assunto muitas vezes, mas com delicadeza, acrescentando sempre que, seja como for, DEUS bem o sabe e eu irei para o céu mesmo que continue a ser cristã. Não querem que eu me sinta ofendida. E depois procuram fazer-me sentir “assimilada” a eles, íntima. E contam-me sobre cada hadith em que o Profeta Maomé, nas pegadas de Issa, Jesus, comia com os leprosos do mesmo prato, tinha compaixão dos pobres e mostrava o seu amor pelas crianças.
Voltei à Itália por um mês, em Junho deste ano. Havia muito que não vinha. Isso, para a minha gente lá em baixo, foi grande acontecimento. Muitos deles temiam que alguém ou algo me impedisse de voltar. Mas grande foi a alegria em voltarem a ver-me, afinal.
E o sheik mais amado, um sheik que tem sido e ainda é mestre do Alcorão para todos os outros sheiks daquela zona, veio logo ao meu escritório contar-me que quando eu estava em Roma…(para eles quase só existe Roma na Itália)… eles sentiam-se felizes e partilhavam em pensamento e na oração da minha peregrinação, pois que se tratava de verdadeira peregrinação.
Eles sabem, continuava a repetir o Sheik Abdirahman, justamente orgulhoso dos seus conhecimentos, que em Roma estão sepultados alguns dos discípulos de Issa, Jesus, o seu grande profeta. Visitar os lugares do martírio desses discípulos é uma peregrinação que cada muçulmano gostaria de fazer no decurso da sua vida.
E foi assim que sentiram terem sido eles mesmos a mandar-me em peregrinação e me esperavam para lho contar e com eles a partilhar.
Num sentido mais amplo, o diálogo com as outras religiões é isto. É partilha. Quase não são precisas palavras. O diálogo é vida vivida; ou melhor, pelo menos é assim que eu o vivo, sem palavras.
Já disse que a tuberculose é um flagelo no mundo somali. Imaginai que, em Borama, um agregado de cinquenta mil pessoas, já diagnosticámos e tratámos mil e quinhentos por ano, de que 100% acusava saliva positiva, sobretudo nos primeiros anos. Agora aparece-nos o problema da SIDA. Há apenas três anos que tratamos doentes com TBC e também SIDA, mas o problema está descontrolado.
Tínhamos descido para oitocentos doentes no ano passado, mas a presença do HIV está a subir violentamente. Num país como a Somália, onde a tuberculose é endémica, a primeira infecção oportunista que os doentes de HIV desenvolvem é a tuberculose. Trabalhamos intensamente no sentido de fazer com que a população se consciencialize do problema e lute dentro e fora de si para que se mude de comportamento e a SIDA fique controlada.
Comecei há cinco anos com trinta camas e um número crescente de cabanas para os doentes graves que não podiam encontrar uma cama na secção.
Actualmente tenho mais de duzentas camas, oito secções novas que a UNHCR construiu para a nossa gente, um laboratório construído pela UNDP e ainda quase cem cabanas para os doentes que não encontram lugar de acolhimento na aldeia.
Alguns vêm de longe: da Etiópia, de Djibuti, de outras partes do país; outros foram rejeitados pelas suas próprias famílias por causa do estigma que vem com essa doença. A tuberculose aqui faz parte da gente, da sua história, da sua luta pela existência.
E no entanto, a tuberculose é um estigma e uma maldição: é sinal de castigo mandado por DEUS por qualquer pecado que foi cometido, ou às claras ou às escondidas.
Em Borama continua, diariamente, a luta pela libertação da ignorância, do estigma, da escravidão do preconceito. Ainda hoje somos testemunhas de pessoas que decidem não se deixar diagnosticar, tratar e curar, e que portanto optam por morrer, contanto que não tenham de admitir em público que estão infectadas com a tuberculose. A guerra é iniciada pelo pessoal de serviço ainda antes de ser combatida a nível pessoal.
Com o sistema do DOTS nós controlamos todos os doentes, dia após dia, falamos com eles, ocupamo-nos dos seus problemas, sejam eles grandes ou pequenos.
Todos os dias debatemos com eles as coisas que fazem deles escravos, infelizes, objectos de escuridão. E eles libertam-se, recuperam a felicidade, encontram cada vez mais luz. No Centro de TB nós abrimos escolas para os doentes e para os seus amigos: uma escola de Alcorão, uma escola de alfabetização e uma escola de inglês. Há já trinta anos que me ocupo de escolas: organizo-as; construo-as se for preciso; e financio-as.
Que uma criatura seja capaz de viver em DEUS é certamente um evento de graça. Mas fica a realidade que, com a educação, a pessoa floresce mais facilmente numa criatura que será capaz de viver em DEUS seu criador e dador de todo o bem.
Os doentes chegam-nos como seres mortificados, a sofrer, apavorados, espezinhados e infelizes. Depois das primeiras semanas de tratamento, tão logo se sentem melhor, gostariam de fugir e voltar para a floresta, para os seus camelos, para as suas cabras ou para os seus campos de milho.
Na “escola” da conversa com o pessoal de serviço dia a dia, nas escolas de alfabetização, de Alcorão e de inglês, conquistam a confiança, compreendem as razões de terem de terminar o tratamento, de tomar os remédios com supervisão; já não sofrem, já não têm medo… da TB; curam-se e fortalecem-se, até mais que os seus parentes, amigos e conhecidos… E uma vez curados, a TB não passará aos seus filhos, às suas mulheres. Antes, não sabiam ler nem escrever… não sabiam quase nada sobre a sua religião…mas agora já sabem, já a conhecem por tradução; aprendem a compreender e a apreciar os valores universais do bem, da verdade, da paz, do abandono em DEUS…” Allah deu, Allah tirou, seja bendito o nome de Allah”… Aprendem a enfrentar os sofrimentos físicos e a morte, a não ter medo deles, a não recusá-los, a aceitá-los.
ALLAH existe! ALLAH sabe, conhece e dirige… Disto falamos juntos todos os dias, consolando-nos uns aos outros, encontrando a força e a confiança nesta consciência adquirida, conquistada e reconquistada dia a dia…; e a vida deles vai mudando…tal como a nossa, na consciência cada vez mais profunda, na capacidade de viver na presença de DEUS cada vez mais autêntica.
Depois de seis meses, há doentes que pedem para ser admitidos a continuar a frequentar o Centro para poderem terminar o seu curso de Alcorão… e todos eles se sentem já mestres: com orgulho, mostram aos outros as suas conquistas, os seus resultados e o seu desenvolvimento em dignidade humana.
Entretanto, eu partilho das suas vidas e ocupo-me de todos os aspectos do seu tratamento; estudo diariamente os manuais de medicina para aprender a curá-los; procuro médicos e enfermeiros; procuro capital, visto não ter acesso aos fundos das ONG; e porque sou sozinha, sem pertencer a uma organização; sirvo os doentes de joelhos; dou muitas horas de instrução aos meus ajudantes de enfermaria para os tornar mais sensíveis, mais atenciosos, mais capazes de amabilidade, profissionalmente mais qualificados. E é graças a este pessoal sensível, atencioso e amável que no Centro de TB também fazemos clínica para epilépticos e para doentes com deficiências mentais.
Eles são os “endemoninhados” deste mundo (25). Trazem-nos a nós acorrentados, imundos em seus próprios excrementos, muitas vezes a uivar…Depois de alguns dias de tratamento e de CARE, são-lhes retiradas as correntes e começam a lavar-se, vindo pouco a pouco sem acompanhantes tomar os seus remédios e florescendo vagarosamente em pessoas normais.
E é graças a duas enfermeiras-obstetras no meu staff, bem como a dois sheiks, aliás os mais queridos e respeitados que trabalham em estreita colaboração connosco, que levamos por diante nesta região uma enorme campanha pela eliminação da mutilação genital feminina e da infibulação que neste meu mundo ainda se cumprem a 100%. É sempre graças ao nosso pessoal de serviço verdadeiramente único que, duas vezes ao ano, fazemos um “Eye Camp”. Vai lá uma equipa de especialistas de olhos, amigos nossos de há muitos anos. Em apenas quatro dias, operam, em média, trezentos e trinta cegos, especialmente de cataratas, servindo-se das lentes intraoculares. No último evento, em Agosto passado, foram além das próprias forças: de facto, restituíram a visão a quatrocentos e cinquenta cegos. As pessoas estão infinitamente gratas por este serviço. E então, nós enchemos Borama de bandeiras que proclamam o “Eu era cego e agora vejo” … do nosso João; mas eles não sabem disso.
Mas falemos da escola para as crianças surdas. Há quatro anos, o primeiro garoto Somali queniano que não ouvia desde que nascera e que eu trouxera para a escola provida de educação especial para surdos no Quénia aos quatro anos, mas agora já homem feito, veio visitar-me em Borama depois duma viagem cheia de aventuras que durou quase um mês, atravessando o Quénia e a Etiópia. Estava a passar por males de amor e sentira urgência em me falar, já que de certo modo eu lhe servira de mãe e o tinha ajudado a arranjar uma noiva.
De repente, decidiu ficar, de forma que, juntos, organizámos uma escola para crianças surdas. Na Somália nunca houve Educação Especial. Nem nunca foi aberta uma escola para crianças surdas, para crianças cegas, ou para crianças com deficiências mentais.
Houve professores universitários que não acreditavam que fosse possível educar uma criança surda até quando vieram ver a nossa escola. Nem ninguém aqui acreditava que isso fosse possível. Mas hoje todos sabem que não há nada que uma criança surda não possa aprender; não há nada que uma criança surda não possa ouvir ou compreender… Claro, é uma longa caminhada; nós já talvez consigamos ver uma luz ainda um tanto pálida; mas mais além existe uma luz tão fulgurante que é capaz de fazer rebentar o coração de alegria e gratidão ao anteciparmos aquilo que, num dia já não muito distante, será… novos céus e uma nova terra.
A nossa escola começou com três pequenitos surdos, depois aumentou para cinco, oito, doze… e agora temos cinquenta e dois.
Começámos a ensiná-los num quarto duma casita que eu alugo em Borama. Depois construímos um telheiro do lado de fora, visto que as crianças iam aumentando; e depois construímos mais um quarto no recinto da casa.
Entretanto, algumas crianças fisicamente deficientes, que tinham sido vítimas da poliomielite e da guerra, vieram implorar-nos que as recebêssemos na nossa escola porque tinham medo de frequentar as escolas para crianças normais…
É um mundo duro, este nosso mundo, o mundo dos fortes… onde não há espaço para os fracos.
Decidimos recebê-los e dissemos-lhes que, quando tivessem conquistado autoconfiança… o facto de saberem tanto como os outros e melhor que os outros lhes daria inevitavelmente a força de se levantarem e de se sentirem como os outros… iríamos pagar-lhes as propinas para frequentarem as escolas normais. Contratámos um óptimo professor para os ensinar. Entretanto, os primeiros meninos tuberculosos que se tinham curado e tinham recebido alta, e também depois de terem florescido nas escolas do Centro TB, queriam continuar a estudar; mas muitos deles não tinham dinheiro para pagar as propinas. E foi assim que decidimos acolhê-los na aula juntando-os aos deficientes.
Entretanto, as pessoas falavam cada vez mais de nós, dos milagres que aconteciam na nossa escola. E foi assim que o Alto Comissário para os Refugiados se ofereceu para nos construir uma escola-escola. Em 1998 construíram-nos quatro salas, um gabinete para professores, uma arrumação e casas de banho.
A seguir, os amigos de Forlì construíram-nos mais duas salas; e alguns amigos protestantes ingleses que eu viera a conhecer através duma série de circunstâncias providenciais, pessoas humildes e generosas, que até me pedem para lhes não mandar tantos pormenores no relatório do uso dos fundos, e me dizem que está tudo bem, que tudo está muito bonito, que tudo é dom do Senhor… construíram três salas e duas casas de banho. E outra vez, os amigos de Forlì construíram mais uma sala. No talhão de terreno que a comunidade nos deu ainda há lugar para uma sala.
Desde há dois anos que acolhemos trinta crianças pertencentes a um clã que é desprezado pelos Somalis: é o dos trabalhadores de ferro, couro, barbeiros e caçadores de animais selvagens de pequeno porte.
Nunca tinham mandado seus filhos à escola. Formam um gueto; as suas filhas não casam com Somalis de outros clãs; os seus filhos também não casam com mulheres de outros clãs. Eles revoltam-se contra DEUS e contra os homens por causa da sua condição de rejeitados, de desprezados, de marginalizados. E são grandes trabalhadores. Aconteceu que muitos deles tinham sido atingidos pela tuberculose; e foi assim que tiveram a oportunidade de ir à escola no Centro TB, de saborear a beleza, a grandeza, a alegria de aprender, de compreender, de evoluir, de crescer e de se libertar… e foi também assim que lhes surgiu espontaneamente a ideia de mandar educar os seus filhos, estes filhos que, desde há séculos, começam a trabalhar desde crianças e labutam como nenhuma outra criança, ganhando o arroz de cada dia com o suor do seu rosto.
A seguir aconteceu que alguns intelectuais, como também algumas pessoas ricas, vieram a implorar-nos que recebêssemos os seus filhos na nossa escola por ser uma escola séria, por haver disciplina, por os professores serem dedicados, amarem as crianças, amarem o ensino e se prepararem para as aulas. Pronto: decidimos aceitá-los também a eles. Mas são poucos.
Presentemente, a escola é uma maravilhosa mistura de crianças de vária origem, história, e capacidade. Naturalmente, as crianças surdas estudam em salas separadas em turmas pequenas; mas durante o recreio, as crianças surdas e as crianças ‘normais’ brincam todas juntas – e esta é uma das experiências mais consoladoras, mais encorajadoras e mais capazes de dar esperança num mundo em que os homens haverão de querer ser, e serão, uma só realidade.
Este UT UNUM SINT tem sido e é a agonia amorosa da minha vida, a consumição do meu ser. É uma vida pela qual me bato e me derreto, como dizia Gandhi, o meu grande mestre, tal como Vinoba, logo a seguir a Jesus Cristo – a vida por que me bato, eu pobrezinha, para ser boa, verdadeira, não violenta no pensar, na palavra ou na acção. E é uma vida em que ando a combater para que os homens sejam um só ser.
Dia após dia, lá no Centro TB, ocupamo-nos da paz, da compreensão recíproca, para juntos aprendermos a perdoar… Oh! O perdão… como é difícil perdoar! Os meus muçulmanos também têm tanta dificuldade em apreciar o perdão, em querê-lo na sua própria vida, no relacionamento com os outros. Eles dizem que a sua religião é tão fudud: tão pouco exigente. Deus pede ao homem que perdoe, dizem eles, mas se no final o homem não for capaz de o fazer, DEUS é misericordioso à mesma.
Lutamos todos os dias por compreender e fazer compreender que a culpa nunca é de um só, mas de ambas as partes; raciocinamos juntos e esforçamo-nos por ver tudo o que há de positivo na outra pessoa; olhamo-nos na cara, nos olhos, porque queremos que a verdade transpareça… O meu pessoal de serviço já aprendeu a rir-se das suas limitações, das suas mesquinhezas, da sua mentalidade monetária, da dureza do seu coração, da sede de vingança quando se sentem atingidos, tudo coisas que tornam o perdão tão difícil. E dizem: certamente que Allah não aceita isto, embora Allah seja infinitamente misericordioso.
Eu, da minha parte, há já muitos anos que aprendi, ou melhor, compreendi no mais fundo do meu ser que, quando há algo que não funciona – incompreensões, ataques, injustiças, inimizades, perseguições, divisões – certamente é por minha culpa, certamente terei errado nalguma coisa.
Aos pés de DEUS, a procura da minha culpa é fácil, não leva tempo, faz sofrer, mas nem tanto assim, porque, afinal, é tão maravilhoso e tão grandioso reconhecermo-nos culpados e lutar para que a culpa seja apagada, para que os comportamentos errados sejam corrigidos, para que em todo o relacionamento com os outros a aproximação se torne positiva… Ora a nossa tarefa sobre a terra é a de fazer viver… E a vida não é, de certeza, a condenação, o jus belli, a acusação, a vingança, enfiar o dedo na ferida, apontar os erros e as culpas dos outros, manter escondida a nossa culpa, a impaciência, a ira, o ciúme, a inveja, a falta de esperança, a falta de confiança na pessoa. A vida é… esperar sempre, esperar contra toda a esperança, carregar às costas as nossas fraquezas, não olhar para as dos outros, acreditar que DEUS existe e que ELE é um DEUS de amor.
Que nada nos perturbe…avancemos sempre com DEUS. Talvez não seja fácil; poderá até ser um empreendimento titânico acreditar desta maneira. Em muitos aspectos, a fé é uma escuridão tão grande – esta fé que é antes de mais dom, graça e bênção…Porque terei de ser eu e não tu? Porquê eu e não ela, ele, os outros?
E no entanto, a vida só tem sentido quando se ama. Nada tem sentido fora do amor. A minha vida tem passado por tantos e tantos perigos; arrisquei-me a morrer tantas e tantas vezes. Vivi anos no meio da guerra. Vivi na carne dos meus, daqueles que eu amava, e portanto na minha própria carne, a malvadez do ser humano, a sua perversidade, a sua crueldade, a sua iniquidade. E escapei-lhes com uma convicção inquebrantável, a de que só o amor conta. Mesmo que DEUS não existisse, só o amor tem sentido; só o amor liberta o homem de tudo aquilo que o escraviza. Especialmente, só o amor nos faz respirar, crescer, florir; só o amor faz com que não tenhamos medo de nada, que nós apresentemos a face ainda não ferida ao escárnio e às bofetadas dos que nos batem porque não sabem o que fazem; que nós arriscamos a vida pelos nossos amigos, que em tudo temos fé, tudo suportamos e tudo esperamos…
É então que a nossa vida se torna digna de ser vivida. É ainda então que a nossa vida se transforma em beleza, graça, bênção. É também então que a nossa vida se torna uma felicidade até mesmo no sofrimento, porque nós vivemos na nossa carne a beleza do viver e do morrer.
Sinto vivamente que todos nós somos chamados ao amor e, portanto, à santidade… A pobre senhora de Léon Bloy vagueava de porta em porta… como mendiga que era. “Só há uma tristeza neste mundo: a de não sermos santos”, repetia ela…E eu gosto de pensar assim: só há uma tristeza neste mundo: a de não amar…o que vai dar no mesmo.
Certo é que temos de nos libertar de muitos empecilhos. Mas há métodos práticos, caminhos, sinalização clara; DEUS mora na pequena cela da nossa alma, chamando por nós.
Só que a Sua voz é uma vozinha, silenciosa até. Devemos pôr-nos à escuta, fazer silêncio, criar para nós um lugar calmo, separado, embora muitas vezes inevitavelmente próximo das outras pessoas, tal como faz a mãe que não pode ficar muito tempo longe dos seus filhinhos. De facto, para amar, nem sempre o coração é suficiente, nem o nosso desejo e sede de DEUS. Faz parte da experiência de qualquer pessoa que tenha decidido lançar-se a servir os pobres que eles, pobres, não são fáceis de amar, e que o coração da pessoa, mesmo o daquela que se doa, pode ser misteriosamente muito duro.
A Wajir eravamo una comunità di sette donne, tutte, sia pure in maniera e in misura diverse, avevamo sete di DIO, e capivamo che quando perdevamo o stavamo per perdere il senso del nostro servizio e la capacità di amare, potevamo ritrovare i beni perduti solo ai piedi del Signore. Per questo, avevamo costruito un eremo e là andavamo per un giorno, o più giorni o per periodi anche lunghi di silenzio ai piedi di DIO. Là ritrovavamo equilibrio, quiete, lungimiranza, saggezza, speranza, forza per combattere la battaglia di ogni giorno prima di tutto con tutto ciò che ci tiene schiavi dentro, che ci tiene nel buio.
Em Wajir éramos uma comunidade de sete mulheres e todas, embora em maneira e medida diferentes, tínhamos sede de DEUS e compreendíamos que quando perdíamos, ou estávamos para perder, o sentido do nosso serviço e a capacidade de amar, podíamos voltar a encontrar aqueles bens perdidos, aos pés de DEUS.
Era lá que encontrávamos o equilíbrio, a calma, a perspectiva, a sabedoria, a esperança e a força para combater a batalha do dia, antes de mais nada com tudo aquilo que nos escraviza por dentro, que nos mantém na escuridão.
Saíamos de lá sentindo-nos incendiadas de amor novo por todos aqueles que o Senhor tinha colocado no nosso caminho…Por vezes confidenciávamo-lo umas às outras; o mais das vezes calávamo-nos…; mas as fisionomias das minhas colegas apresentavam-se tão belas, tão luminosas, que me contavam tudo aquilo que o pudor impedia de me comunicarem por palavras.
Depois, no decurso desta minha vida já bastante longa, apareceram outros ermitérios, outros silêncios, a palavra de DEUS, os grandes livros, os grandes amigos, muitos, mesmo muitos, que inspiraram a minha vida principalmente na fé católica, tais como: os padres do deserto, os grandes monges, Francisco de Assis, Clara, Teresa de Lisieux, Teresa de Ávila, Charles de Foucauld, o padre Voillaume, a irmã Maria, Giovanni Vanucci, Primo Mazzolari, Lorenzo Milani, Gandhi, Vinoba, Pina e Maria Teresa …
Mas, no centro, estavam sempre DEUS e Jesus Cristo. Nada para mim tem real interesse senão DEUS, senão Jesus Cristo…os pequeninos, sim, os que sofrem, eu enlouqueço, eu perco a cabeça face aos farrapos de humanidade ferida…e quanto mais feridos, mais maltratados, desprezados, sem voz, e sem valor aos olhos do mundo, tanto mais os amo. E este amor é ternura, compreensão, tolerância, ausência de medo, audácia. Mas isto não é um mérito. É uma exigência da minha natureza.
Mas o certo é que, neles, eu O vejo a ELE, o cordeiro de Deus que sofre na Sua carne os pecados do mundo, que os carrega sobre os seus ombros, que sofre mas com imenso amor…: ninguém escapa ao amor de Deus.
Centenas de vezes me senti culpada por ter aceitado vir aqui diante de vós a falar-vos da minha vida; fui fraca e aceitei o parecer dos meus amigos que estão convencidos de que, nesta etapa da minha vida, passados quarenta anos, seria justo e bom partilhar com os outros os dons de DEUS. Mas se este meu “vir a público” puder ser útil a alguém que não acredite, a alguém que não viva dentro de si esta extraordinária realidade de que DEUS ama cada pessoa, da mais digna de amor aos olhos humanos até à mais desgraçada e desprezada, à pessoa má, criminosa…então eu me ajoelharia e bendiria ao Senhor porque em mim fez grandes coisas Aquele que é poderoso .
A pessoa que não é boa, que é incapaz de perdoar, que gosta de ferir, a pessoa que quer vingança, a pessoa falsa, não são necessariamente pessoas más, incapazes de perdoar ou falsas. São assim porque não encontraram pelo caminho uma criatura capaz de as compreender, de as amar, de se encarregar das suas culpas…
“Tu portaste-te mal? Pagarei por isso em tua vez”. Era assim que dizia Gandhi. Assim no-lo repete Jesus Cristo desde há dois mil anos… talvez porque nós humanos somos bastante surdos. Certo que a Sua voz é fina e até silenciosa…mas afinal ELE lá está, na pequena cela da nossa alma e não deveria ser assim tão difícil descer lá abaixo e morar com ELE. Palavras? NÃO. É a verdade. É a realidade.
Com certeza que, para a maioria das pessoas, será e é preciso fazer silêncio, quietude, desligar o telemóvel, deitar o televisor pela janela, decidir de uma vez por todas libertar-se da escravidão das aparências e que é importante para o mundo mas que não vale absolutamente nada aos olhos de DEUS, pois que se trata de não-valores.
Aos pés de DEUS, nós voltamos a encontrar a verdade perdida; tudo o que se precipitara na escuridão se torna luminoso, tudo o que era tempestade se acalma; tudo o que parecia ser um valor – mas não o é – aparece na sua verdadeira vestimenta e nós acordamos para a beleza duma vida honesta, sincera, boa, feita de realidades e não de aparências, tecida de bem, aberta aos outros, em fortíssima tensão omnipresente a fim de que os homens sejam um só ser.
É hora de terminar. Muito dei aos Somalis. Dos Somalis muito recebi. O maior valor que me deram, um valor que ainda não sou capaz de viver, é o da família alargada, de forma que, pelo menos no seio do clã, TUDO é partilhado. A porta está sempre aberta a acolher até o mais longínquo membro do clã. A mesa é sempre partilhada. O que foi preparado para dez pessoas será partilhado com quem quer que se apresente à porta, com a máxima naturalidade. Não há nem poderá haver recriminações, queixinhas, vitimização. É a coisa mais natural do mundo repartir com os irmãos.
No meu mundo de Borama, a grande chaga é o desemprego. Muita gente nunca trabalhou na vida porque nunca encontrou trabalho. E é assim que só aquele que trabalha se vê “constrangido” a repartir o fruto das suas canseiras com outros vinte ou trinta que não trabalham. Mas ele não vive a partilha como um “constrangimento”. Vive-o com naturalidade. Lá, partilhar faz parte da existência. E depois, aquela oração cinco vezes ao dia… interromper seja o que for que se esteja a fazer, por mais importante que seja, para dar tempo e espaço a DEUS…
Desde que estou com eles, são já trinta anos que me consumo para que também no nosso mundo interrompamos o trabalho, nos levantemos se estivermos a dormir, interrompamos qualquer conversa para fazer silêncio e recordar DEUS, e melhor ainda se em conjunto com outros, para reconhecer que d’ELE vimos, n’ELE vivemos e a ELE voltamos.
MAS o dom mais extraordinário, o dom pelo qual agradecerei a DEUS e a eles, in aeternum e para sempre, é o dom dos meus nómadas do deserto. Sendo muçulmanos, eles ensinaram-me a FÉ, o abandono incondicionado, a submissão a DEUS, submissão essa que nada tem de fatalismo, uma submissão de pedra e cal, assente em DEUS, uma submissão que é CONFIANÇA e AMOR.
Os meus nómadas do deserto ensinaram-me a tudo fazer, tudo começar e tudo realizar, em nome de DEUS. BISMILLAHI RAHMANI RAHIM… Em nome de DEUS Omnipotente e Misericordioso… Levantamo-nos em nome de DEUS; lavamo-nos, limpamos a casa, trabalhamos, comemos, voltamos a trabalhar, a estudar, a falar, e fazem-se as milhentas coisas de cada dia, adormecendo finalmente… TUDO em nome de DEUS. A tradição de repetir incessantemente o nome de DEUS, que já tinha fascinado a minha vida com as histórias do peregrino russo antes da minha primeira saída, transformou a minha vida de forma permanente.
Dou GRAÇAS aos meus Somalis do deserto que mo ensinaram. Depois, a vida ensinou-me que a minha fé sem o AMOR é de todo inútil, que a minha religião cristã não tem tantos mandamentos e mais uns tantos, mas apenas um, que não adianta construir catedrais ou mesquitas, nem fazer cerimónias nem peregrinações… que aquela Eucaristia que escandaliza os ateus e as outras crenças encerra afinal uma mensagem extraordinária: “Isto é o meu corpo tornado pão para que também tu te tornes pão na mesa dos homens, porque se não te fizeres pão, não estarás a comer um pão que te salva mas comes, sim, a tua própria condenação”.
A Eucaristia diz-nos que a nossa religião é inútil sem o sacramento da misericórdia, que é na misericórdia que o céu se encontra com a terra.
Se eu não amar, DEUS morre nesta terra; que DEUS seja DEUS, disso sou eu a causa – diz Silésio – se eu não amar, DEUS ficará sem epifania, porque somos nós o sinal visível da Sua presença e O tornamos vivo neste inferno de mundo em que parece que ELE não esteja; e tornamo-lO vivo todas as vezes que paramos junto ao homem ferido.
Afinal, eu só sou de facto capaz de lavar os pés em todos os sentidos aos desgraçados, àqueles que ninguém ama, àqueles que misteriosamente nada possuem de atraente, em nenhum aspecto, aos olhos de ninguém.
Luigi Pintor , um suposto ateu, escreveu um dia que não há, em toda uma vida, nada mais importante a fazer senão inclinar-se para que outra pessoa, agarrando-se ao teu pescoço, se possa levantar. O mesmo vale para mim. É em ajoelhar-me para que, segurando-se ao meu pescoço, eles possam voltar a levantar-se e retomar a caminhada ou mesmo caminhar onde nunca tinham caminhado, que eu encontro a paz, uma energia fortíssima, a certeza de que TUDO é GRAÇA.
Gostaria de acrescentar que os pequeninos, os sem voz, aqueles que não contam para nada aos olhos do mundo mas tanto aos olhos de DEUS, os seus predilectos, precisam de nós e nós devemos estar com eles e ser para eles, nada importando se a nossa acção é como uma gota de água no oceano. Jesus Cristo nunca falou de resultados.
ELE só falou de nos amarmos, de lavarmos os pés uns dos outros, de sempre nos perdoarmos… Os pobres estão à nossa espera. Os modos de serviço são infinitos e ficaram por conta da imaginação de cada um de nós. Não esperemos ser instruídos no campo do serviço. Inventemos… e haveremos de viver novos céus e uma nova terra em cada dia da nossa vida.
Annalena Tonelli