Por isso é tão importante que a teologia nos ajude a fazer um exercício crítico em relação às imagens de Deus, que têm de ser purificadas, para que a nossa inscrição no mundo traduza o Deus de Jesus Cristo e não um Deus que a própria vida de Cristo veio negar.
Mas como pode a fragilidade socorrer se, no quotidiano, a nossa experiência é a oposta? Precisamos de abrigos fortes contra a força da natureza, de estar fortalecidos no trabalho, nas relações sociais… Como pode ser um Deus frágil a socorrer-nos?
É interessante o que Simone Weil diz na hora da sua conversão: que se converte porque Deus não é o Deus dos fortes, mas o Deus dos fracos. E, num percurso de fé autêntico, há sempre um momento em que se percebe que Deus nos esvazia as mãos e esse é o maior dom que ele nos dá. A fragilidade faz-nos experimentar o abandono, a entrega, uma confiança que é verdadeiramente radical. E não assenta no que já tenho, mas no exercício de colocar a minha vida na dependência do amor de Deus, na dependência do que Deus pode ser para mim.
Esse é o exercício espiritual mais profundo. Claro que, na nossa vida, precisamos de confirmação, de mediações que permitam que a vida aconteça de forma estável, de forma segura. Mas, ao mesmo tempo, não podemos substituir essa nudez necessária, essa fragilidade do encontro mais radical connosco próprios por falsas respostas ilusórias, que nos afastam de nós mesmos. Em última análise, nascemos e morremos e estamos perante o mistério da vida. Perante ele, não temos grandes respostas nem grandes armaduras senão a descoberta do dom, a descoberta da sede.
Nem para tragédias inomináveis como a Shoah ou para grandes desastres ou massacres?… Etty Hillesum, que morreu em Auschwitz, escrevia, dirigindo-se a Deus: “Uma coisa se vai tornando cada vez mais clara para mim: que Tu, Deus, não nos podes ajudar, que temos de ser nós a ajudar-te para nos ajudarmos a nós próprios.”
Essa é uma das grandes frases do século XX, pronunciada por esta mulher num campo de concentração. Ela percebe que o mais importante não é escapar a um destino, não é salvar-se a si mesma e salvar a sua pele, não é esperar que Deus resolva de fora os meandros da história, mas perceber que a nossa vida é para ajudar Deus a fazer, a transformar a história, a alargá-la… Isso faz-nos olhar para a vida de uma outra forma. Sem essa descoberta, a nossa vida é uma lista de reivindicações, de desejos imediatos, acaba por ser algo que não sabemos o que fazer com ela. Quando descobrimos que a vida pode ser um dom, cúmplice de um milagre maior, como Etty descobriu, a vida ganha outra dimensão. Por isso, nas últimas palavras que ela escreve, ao sair do campo de concentração para Auschwitz, onde havia de morrer, ela testemunha isto: “Saímos do campo de concentração cantando…”
Podemos sair da vida de muitas maneiras. Mas, para sair cantando, havemos de ter abraçado o paradoxo, a contradição do que é viver. E, no fundo, é perceber que somos mais quando somos menos, que é dando que recebemos, que é perdoando que somos perdoados, que é na oferta radical de nós mesmos e na hospitalidade que fazemos à vida que, no fundo, somos hóspedes acolhidos em festa pela mesma vida.